Imagem: Wikimedia Commons

Análise de Stefano Pozzebon

Favelas circundam Caracas, a capital da Venezuela, como se fossem as bordas de uma tigela. Casinhas se empilham nas colinas íngremes, algumas acessíveis apenas por escadas vertiginosas.

No início deste mês, Ingrid Sanchez tentou angariar votos para o Partido Socialista no poder em Petare, o maior bairro da Venezuela. Com o início das eleições parlamentares em 6 de dezembro, ela alugou motocicletas e jipes para transportar por morros íngremes eleitores pobres, mas fiéis, até a seção eleitoral.

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Sanchez não tem dinheiro para gastar. Ex-professora, ela vive com uma pensão do estado de apenas um dólar e meio por mês. Foi o Partido Socialista (a agremiação do falecido Hugo Chávez) que deu a Ingrid dinheiro para pagar os veículos. Mas eles não eram bolívares venezuelanos: eram dólares norte-americanos.

Enquanto contava, Sanchez percebeu que as quatro notas de US$ 20 que ela segurava valiam mais de 50 meses de sua pensão. “Tudo está em dólares agora”, afirma a mulher com tristeza – um sinal de mudança monumental no país que, segundo ela, faria Chávez se revirar o túmulo.

Sanchez, de 57 anos, é membro fiel do Partido Socialista e acredita ferozmente na visão do falecido presidente Hugo Chávez, que profetizou uma utopia marxista na qual o estado cuidaria das necessidades do povo, elevaria sua qualidade de vida, eliminaria as desigualdades e reservaria à iniciativa privada a um papel menor na economia. “Nunca se perde a esperança, e esse é um projeto no qual ainda acredito”, disse.

Mas a Venezuela hoje é bem diferente da imaginada por Chávez. A fome é galopante, a desigualdade é estonteante e os hospitais públicos estão abandonados em meio à pandemia de coronavírus. Cada vez mais, o dólar norte-americano tem precedência sobre o bolívar e, embora o salário mínimo venezuelano seja o mais baixo da América Latina, o mercado de ações do país está em alta.

O sucessor de Chávez, o atual presidente Nicolás Maduro, inaugurou recentemente um hotel ultraluxuoso cujas diárias custam o equivalente a US$ 300.

Tudo isso levanta uma questão com a qual a ex-professora Ingrid Sanchez claramente tem lutado: o socialismo ainda está vivo na Venezuela? “Não sei, estamos fazendo as coisas de cabeça para baixo”, admitiu.

A invasão do dólar

Quando Chávez subiu ao poder em 1998, a riqueza da Venezuela era abundante, com alguns analistas estimando que o país ganhou quase um trilhão de dólares com as receitas do petróleo entre 1999 e 2014. Isso é mais de oito vezes o que custou, em valores, de hoje, o Plano Marshall, que ajudou os países europeus após a Segunda Guerra Mundial.

Com tanto dinheiro, era fácil imaginar o Estado venezuelano como a figura paterna definitiva. Chávez investiu a maior parte das receitas do país em programas destinados a aumentar o padrão de vida da população e reduzir a desigualdade. A televisão estatal transmitia horas de imagens de cidadãos recebendo moradia, alimentação e subsídios financiados pelo governo para cooperativas agrícolas.

O presidente enviou médicos e profissionais de saúde cubanos para montar clínicas em bairros pobres e lançou campanhas de alfabetização e educação. Em dezembro de 2007, chegou a doar combustível para aquecimento a norte-americanos de baixa renda em Nova York e Boston – apenas 15 meses depois de chamar o então presidente George W. Bush de “diabo” nas Nações Unidas.

Ao longo de sua presidência de 14 anos, Chávez oscilou entre diferentes tendências econômicas – embora sempre tenha trabalhado para fortalecer o comando do Estado na economia por meio de controles de preços, regulamentos de câmbio e gastos públicos. Ele ameaçou adquirir a maioria das empresas privadas na Venezuela, mas nunca aboliu a propriedade privada. Atacou o capitalismo, mas não abandonou as relações comerciais com os Estados Unidos.

Chávez sonhava em acabar com o domínio do dólar norte-americano (um emblema do maior defensor do capitalismo no mundo) e criar uma moeda alternativa para comprar e vender petróleo bruto. “O mundo é vítima do império do dólar. Os Estados Unidos compraram meio mundo com notas inúteis, mas o império do dólar chegou ao fim!”, bradou em 2009.

Dez anos depois, são o bolívar venezuelano e a revolução bolivariana que parecem estar chegando ao fim. Até seu ex-pupilo Maduro reconhece que as coisas mudaram: questionado pela CNN no início deste mês se ainda considerava a Venezuela um país socialista, reconheceu que os “valores” do socialismo poderiam estar desaparecendo, referindo-se às novas exibições de riqueza nas ruas nobres de Caracas.

“Às vezes avançamos, outras vezes recuamos. Talvez hoje tenhamos recuado no que diz respeito aos nossos valores socialistas. Eu reconheço isso”, declarou o presidente venezuelano em uma entrevista coletiva.

Quando os preços do petróleo começaram a cair em 2013, Maduro (que se tornou presidente repentinamente naquele ano, quando Chávez morreu de câncer sem deixar nenhum plano de transição do poder) se viu travando uma batalha perdida contra as forças do mercado. Ele decretou o congelamento dos preços da cesta básica, o que apenas fez os produtos sumirem dos estabelecimentos oficiais para reaparecerem no mercado negro custando até dez vezes mais.

À medida que as reservas estrangeiras diminuíam, Maduro imprimiu pilhas de dinheiro novo, desvalorizando o bolívar ao ponto de virar um papel quase sem serventia – o que esmagou os salários da maioria dos trabalhadores venezuelanos.

Nos anos mais recentes, até mesmo o controle do Estado sobre o sistema financeiro do país foi fortemente abalado, com o dólar norte-americano se tornando cada vez comum nas transações cotidianas. Em março de 2019, toda a rede elétrica da Venezuela entrou em colapso, deixando algumas regiões sem energia por até uma semana.

Sem eletricidade, as transações eletrônicas, incluindo pagamentos com cartão de crédito e débito, se tornaram impossíveis – e pagar em dinheiro já era inútil, com as notas de bolívar de denominação mais alta valendo apenas alguns centavos de dólar. Assim, a economia passou a se movimentar com cédulas estrangeiras ilegais.

Os dólares norte-americanos sempre foram vistos pelos venezuelanos comuns como um último recurso, algo que a maioria das famílias mantinha escondido sob o colchão para as necessidades do mercado negro. Mas, durante os apagões, os dólares foram usados para pagar sacos de gelo para manter os alimentos em geladeiras sem energia. As lojas começaram a aceitar as notas ilegais, primeiro observando cuidadosamente as temidas forças de segurança da Venezuela, depois gradualmente ao ar livre. O governo não interveio.

Uma vez que a barreira foi quebrada, era impossível voltar atrás. Em Caracas, transações de apenas alguns dólares substituíram as transferências bancárias locais de milhões de bolívares. Os produtos estão cada vez mais disponíveis em Caracas para quem pode pagá-los em dólares ou outras moedas estrangeiras, como euros, pesos colombianos ou reais.

Capitalismo à moda venezuelana

A pandemia do coronavírus também impôs a Maduro a necessidade de limitar o subsídio ao petróleo consumido internamente, algo que os cidadãos venezuelanos consideravam um direito inalienável em um país tão rico na commodity.

Os governos socialistas do país sempre foram muito cuidadosos com essa delicada questão. Em 2014, o próprio Maduro declarou que não tocaria no preço da gasolina porque seria como “colocar lenha na fogueira”. Entretanto, com a demanda por gasolina bastante reduzida durante o lockdown, ele foi capaz de fazer este ano o que nenhum outro governante da Venezuela ousou nas últimas três décadas: aumentar os preços.

Em maio, Maduro declarou que a gasolina subsidiada seria racionada para 30 galões por mês por veículo, mas os clientes poderiam comprá-la com um prêmio de US$ 0,5 o litro (US$ 1,9 por galão) em um número selecionado de postos de gasolina no país. O resultado foi que a gasolina subsidiada praticamente desapareceu das bombas.

Com o colapso quase total dos serviços, falta de gasolina e água e apagões frequentes, houve pelo menos 1.484 protestos na Venezuela no mês de outubro, 93% deles relacionados a necessidades básicas como o acesso a serviços regulares, de acordo com o Observatório Venezuelano de Conflito Social.

Esses protestos, porém, foram rapidamente reprimidos pelas forças de segurança, permitindo que o governo levasse a cabo a política de forma eficaz. “O governo conseguiu quebrar o mito do caracazo”, observou Altero Alvarado, analista de petróleo em Caracas, referindo-se a um famoso ciclo de motins contra o aumento do preço do petróleo em 1989.

Outro golpe para a visão econômica do controle estatal da era Chávez ocorreu em novembro deste ano, quando o governo permitiu pela primeira vez que uma empresa privada emitisse títulos em dólares e, com isso, levantasse capital fora do controle governamental.

A medida, inédita desde o início dos anos 2000, veio na forma de uma autorização pouco divulgada a um único fabricante de rum – a bebida nacional da Venezuela, consumida tanto nas favelas de Caracas quanto nos balneários mais exclusivos da costa caribenha.

É extremamente difícil administrar uma empresa privada na Venezuela. O país está classificado em 188º lugar no ranking do Banco Mundial que mede a facilidade para fazer negócios, entre os 190 que fazem parte da lista.

Até agora, o governo decidia quais empresas teriam acesso às moedas estrangeiras e a taxa a ser cobrada pelo Banco Central na sua conversão em bolívares. Este ano, contudo, o governo permitiu que a marca venezuelana de rum Santa Teresa arrecadasse dinheiro com a emissão de títulos no valor total de US$ 300 mil.

Os títulos permitem que os investidores destinem uma certa quantia de dinheiro à empresa, em troca da promessa de receberem de volta o valor aplicado com juros. No caso da Santa Teresa, a empresa recorreu a títulos ao perceber que nenhum banco venezuelano teria capital suficiente para emprestar o necessário para a expansão da destilaria, devido à desvalorização do bolívar. Ser capaz de tomar empréstimos de investidores privados e pagá-los em dólares protegeria a empresa da inflação galopante do país.

“De certa forma, estamos começando a voltar à realidade, a entender que os mercados têm que funcionar”, disse Alberto Vollmer, dono da Santa Teresa, em entrevista à CNN em Caracas. “Eles tentaram o absurdo, que era aniquilar todos os negócios. Não funcionou, então agora estão revertendo as políticas”, acrescentou. (Uma observação sobre os bastidores históricos aqui: em 2006, o próprio Chávez expropriou parte das terras da Santa Teresa durante um de seus famosos programas de TV chamados “Olá, Presidente!”)

Ricardo Cusanno, presidente da Federação das Câmaras de Comércio da Venezuela, ressalta que a Venezuela não é a primeira economia planejada a traçar esse caminho. O país pode estar a caminho de se tornar uma “China tropical”, segundo ele, referindo-se à experiência chinesa de combinar a iniciativa privada e os mercados livres com controle político intensivo e ausência de direitos civis.

Desde a descoberta do acordo com a Santa Teresa, diz Cusanno, mais investidores estrangeiros expressaram interesse em fazer negócios na Venezuela. “Nas últimas semanas, tem sido uma loucura. Fomos contatados por fundos de investimento franceses, latino-americanos e até norte-americanos”, afirmou, com a visível empolgação de quem não via o mesmo nível de interesse há muito tempo.

“O que se vê agora é a perda de controle”

Maduro disse que nem a pobreza esmagadora da Venezuela nem suas recentes concessões ao capitalismo significam que o grande projeto socialista de Chávez falhou. Segundo o presidente, o progresso do país apenas foi interrompido pelo colapso do preço do petróleo de 2013-2015 (que ele frequentemente se refere como uma “guerra”), que deixou seus cofres vazios enquanto os programas sociais funcionavam a todo vapor.

“Chávez nunca disse que o socialismo triunfou aqui”, lembrou. “Vamos trabalhar muito para implantar uma forma socialista de produção e estamos apenas começando. Quando demos os primeiros passos em direção a uma economia socialista, veio essa guerra brutal e perdemos nossa receita do petróleo”.

Os críticos veem as dificuldades financeiras da Venezuela de forma diferente, culpando, além dos preços do petróleo, o próprio fracasso do Estado em investir no setor de petróleo, a corrupção catastrófica do governo e a má gestão econômica nacional. Eles também apontam que outros exportadores de commodities, como a vizinha Colômbia, conseguiram superar a crise. De acordo com o FMI, o PIB da Venezuela perdeu 86% de seu valor sob a supervisão de Maduro, principalmente devido à queda da receita com o petróleo.

Além disso, a lenta invasão do dólar, dizem os analistas, pode ser mais um sinal do caos que se aprofunda do que de uma liberalização econômica positiva.

Embora os venezuelanos agora possam usar moedas estrangeiras para comprar mantimentos, eles ainda não podem abrir uma conta bancária em dólares. Com isso, suas economias ficam sujeitas a uma das maiores taxas de inflação do mundo. Quanto mais dinheiro estrangeiro é usado no país, mais o bolívar perde valor, em última análise prejudicando os trabalhadores de baixa renda que ainda são pagos em bolívares, como a ex-professora Ingrid Sanchez.

Luis Vicente León, um dos analistas mais respeitados em Caracas e gerente de uma empresa de pesquisas, teme comparar este momento na Venezuela com a transição da China para mercados abertos na década de 1980, quando o investimento estrangeiro foi lentamente permitido em setores específicos da economia e zonas econômicas especiais limitadas. A China também manteve sua própria moeda nacional enquanto reformava gradualmente a economia.

“Pode haver um plano para fazer as mesmas coisas que Deng Xiaoping fez na China, mas talvez no futuro. Os primeiros passos das reformas chinesas podem ter sido semelhantes, mas acho que ainda não estamos vendo isso. O que se vê agora é a perda de controle, do governo, da economia e dos preços”, explicou.

Rafael Ramirez, um ex-ministro do petróleo que trabalhou com Chávez e Maduro de 2003 a 2014, alerta que a atual mudança não regulamentada pode abrir a porta para a anarquia econômica, onde os mais poderosos ditam as regras. “Quando Maduro diz que agradece a Deus pelo dólar, ele está se rendendo. A economia está nas mãos de especuladores e aproveitadores”, afirmou à CNN.

Ramirez faz parte do número crescente de ex-assessores de Chávez que acusam Maduro de desperdiçar a Revolução Bolivariana. Exilado em paradeiro desconhecido, ele acusa Maduro de abraçar o capitalismo de compadrio, enquanto a maioria dos venezuelanos não vê nenhum benefício em regras de mercado relaxadas.

De acordo com uma pesquisa recente feita por três universidades independentes em Caracas, 96% dos venezuelanos vivem abaixo da linha da pobreza. Mais de 5 milhões fugiram das dolorosas condições econômicas do país, tornando a Venezuela o maior emissor de migrantes da história moderna da América Latina.

Sanchez, a professora aposentada e membro do Partido Socialista, viu uma de suas filhas partir para o Chile. Sua filha mais velha continua na Venezuela, fazendo bicos para sobreviver e ajudando-a a administrar uma rádio comunitária. Com os salários tão desvalorizados, não há motivo para se buscar um emprego de tempo integral, diz Sanchez.

A casa da família Sanchez em Caracas é humilde, com dois cômodos de cada lado de uma cozinha onde as panelas estão vazias há muito tempo. Na sala de estar, um grande retrato de Chávez em uniforme militar ergue-se orgulhosamente na parede ao lado da porta, dando as boas-vindas a todos os visitantes com o aviso: “Você não fala mal de Chávez aqui”.

Quando fala sobre o tipo de país que gostaria que a Venezuela fosse, ela diz: “Acredito em uma comunidade ativa, organizada. Quer saber por que não fui embora? Porque eu sei que há pessoas aqui que estão felizes com o que eu faço, e essa pequena semente que estou plantando hoje é o que germinará em mudança amanhã”.

“Só o povo salva o povo”, recita ela, citando um famoso slogan da guerrilha revolucionária dos anos 1960. Mas na Venezuela de hoje, ela reconhece, “as pessoas estão ferrando as pessoas”.

(Texto traduzido da CNN, leia o original em inglês).